segunda-feira, 7 de março de 2022

Mais Semanário.Mais/Opinião - 23.fev.2022


O agrupamento vocal integrante da Escola de Música da Póvoa de Varzim estreou-se em janeiro de 1989. Um dos mais sólidos objetivos foi, logo de início, o de aglutinar encarregados de educação, docentes e melómanos das mais diversas origens e faixas etárias na prática vocal em padrões de exigência técnica e interpretativa, numa clara estratégia de otimizar potencialidades da comunidade educativa. Naturalmente, à medida que novas gerações se sucederam, juntaram-se-lhes alunos, num processo em contínua renovação. A participação em concertos no concelho, no país e no estrangeiro foi progressiva e bem conseguida as mais das vezes. Apresenta-se hoje em grande forma, não obstante a arreliadora pandemia que interrompeu de forma drástica as atividades culturais performativas e necessária preparação. 

Na origem da iniciativa há uma personagem a quem urge justamente felicitar e agradecer. O Prof. José Abel Carriço é o autor e fundador do conceito, a alma mater que muito se empenhou em corporizá-lo, semana após semana e ano após ano de intenso e persistente trabalho. Nunca se desviando dos objetivos fundacionais, conseguiu superar momentos deveras difíceis nos primeiros tempos (súbitas alterações de logística, incompreensões, mitigado apoio institucional e mediático, etc. etc.) que a muitos de nós apontariam caminhos de desistência. Quando se proceder ao levantamento do número de componentes que já passaram pela formação, concertos realizados e repertório apresentado, é de antever que os efeitos sejam surpreendentes e provarão que, pelo impacto sociocultural exercido na população, valeu a pena tamanho esforço. 

O estrondoso êxito do concerto de 8 de fevereiro é resultado de fatores decisivos, a começar na resiliência e preparação técnica do Prof. Tiago Carriço, que, mal vislumbrou leve trégua da pandemia, congregou coralistas, instrumentistas e solistas para a conceção e execução de um programa ambicioso e temerário. Refira-se que o núcleo de intervenientes continua centrado nas atividades da Escola de Música, e bem, mas integrando colaboração de intérpretes convidados, numa exemplar e saudável abertura à experiência enriquecedora de procedências externas. 

Desde a sua fundação, o CEEMPV dedicou-se a assimilar e divulgar repertório vocal sacro e profano. O programa apresentado resulta claramente de seleção desse património. Como que a fazer reviver felizes reminiscências das primeiras temporadas subsequentes à fundação, o concerto iniciou-se com música tradicional portuguesa trabalhada por Fernando Lopes-Graça ("Acordai", "O milho da nossa terra" e "Canção da vindima"), Jacques Chailley ("Os olhos da Marianita") e Manuel Faria ("Trai-trai"), pontuada por percussão (algo intrusiva, por vezes). Seguir-se-iam momentos de intensa espiritualidade com o belíssimo "Locus iste" (de Bruckner), um transparente "Ave Verum Corpus KV. 618" (Mozart) e o lírico e encantatório "Ubi Caritas" (do menos conhecido Ola Gjeilo, compositor norueguês nascido em 1978), três peças em que o CEEMPV habitualmente se transcende - e mais uma vez isso aconteceu. Outro dos grandes êxitos do Coral é o "Cantique de Jean Racine", de Gabriel Fauré. Trata-se de uma obra de juventude baseada num hino do Breviário romano ("Verbo igual ao Altíssimo, nossa única esperança"...), traduzido para francês pelo autor de "Athalie". Simplicidade melódica e polifonia luminosa na versão de um CEEMPV em estado de graça. 

O concerto encerrou com uma inesperada (para o CEEMPV) "Fantasia Coral para piano, coro e orquestra" op. 8, de Beethoven. Para surpresa de muitos, ao tomarem contacto com o alinhamento do programa. A obra, de dificuldades técnicas e expressivas assinaláveis, designadamente para as tessituras agudas do coro, característica habitual na escrita de Beethoven, de resto (lembre-se a Missa Solemnis e a 9. Sinfonia), foi superada com brilhantismo. Uma proeza! 

É chegada a altura de referir que, em Raúl da Costa, cada vez mais se confirma um magnífico talento pianístico. A sustentar esse precioso dom, constata-se um trabalho intenso e minucioso e sólida preparação profissional, que lhe permite apresentar-se em palco com rara convicção e capacidade de empatia só ao alcance dos grandes intérpretes. Na obra de Beethoven, todas essas qualidades se revelaram: um fraseado assombroso e inspirador, servido por técnica perfeita, permitiu que a fluidez do discurso fosse exemplar. A paleta tímbrica é de rara beleza e é já a sua assinatura sonora. Pairou no espaço uma arrebatadora sensação de improviso controlado, bem no espírito da "Fantasia"! Um caloroso bravo ao jovem pianista! 

A completar o florilégio de intérpretes, acrescente-se que solistas (Maria João Matias, Lenabel Pinheiro, Sara Amorim, Pedro Rodrigues, João Sá e Rui Silva), Sinfonieta Pró-Música (belas intervenções do percussionista e chefes de naipe das cordas e sopros) e Coro aniversariante, dirigidos com precisão e maleabilidade pelo Prof. Tiago Carriço, atual Diretor Musical do CEEMPV, estiveram à altura do repto, evidenciando o coletivo contagiante prazer em servir a Música e em transmitir a mensagem nuclear da obra ("Quando o Amor e a Força se unem"). 

Depois desta noite de exceção, a expectativa para os próximos concertos é elevada. São manifestas as potencialidades do CEEMPV. Em tempo de crise existencial, o regresso do agrupamento à normalidade com a sua função educativa e agregadora é mais do que nunca saudado, após quase dois anos de forçada inatividade em angustiante espera. A fruição e prática da boa Música sempre contribuíram para alicerçar um certo desígnio civilizacional a que temos direito a aspirar. Por isso, o poema que Carmen Yáãez dedicou a Luís Sepúlveda aquando da morte do escritor (foi uma das vítimas da primeira fase pandémica), citado pelo Sr. Vereador do Pelouro da Cultura, Dr. Luís Diamantino, nas considerações finais ao concerto ("Éramos tão felizes e não sabíamos"), poderia ser parafraseado agora em sentido mais prospetivo sabemos que ainda somos capazes de ser felizes. Possível mensagem de conforto e esperança interiorizada pelo público, atendendo à sua entusiástica ovação final. Razão para se esperar que, no próximo futuro, após este assinalável regresso, a Coral Ensaio, solistas convidados e a Sinfonieta Pró-Música continuem a proporcionar-nos momentos pelo menos tão estimulantes como os da noite de 8 de fevereiro de 2022. 

Póvoa de Varzim, 14 de fevereiro de 2022. 

João Marques

in Mais Semanário. Mais/Opinião, pág. 10, ed. impressa de 23.fev.2022